Qualquer
pessoa que saiba o que custa de investimento pessoal, cognitivo e até
financeiro pesquisar acervos, obter revistas antigas e recortes de jornal para
montar um quebra-cabeça que pode se chamar biografia, mas também sociologia,
história ou até crítica literária, deve estar de cabelo em pé com o lobby da MPB – Movimento Proibitivo de
Biografias, por supuesto.
A
MPB, ou melhor: o MPB está defendendo seus cofres e talvez alguma fofoca desabonadora, mas dá de
ombros para o efeito de sua tomada de posição em um assunto tão grave como o
dos direitos da personalidade, confrontados com o da livre expressão. Deus me
livre de perder precioso tempo com uma biografia do Chico Buarque: adoro suas canções, declaradamente,
e até já fui de muletas a um show seu no Teatro Castro Alves, mas não tenho
paciência nem sequer para o narrador de Leite
derramado, que, deitado no leito de um hospital, conta profusamente o lado
mais sórdido de sua existência a uma filha, sempre lhe requisitando atenção: “Mas você perdeu lances fundamentais de minha
vida. Do jeito que anda relapsa, quando você compilar minhas memórias vai ficar
tudo desalinhavado, sem pé nem cabeça” (abertura do capítulo 21).
Eulálio
d’Assumpção, o narrador preocupado com a estrutura de sua “biografia autorizada”,
poderia muito bem ficar nas páginas da obra, chorando o seu leite derramado. Mas,
como um dia arrisquei fazer, terá fugido de muletas para ver Chico Buarque; e,
muito mais ágil e impudente, subiu assim o morro da Gávea e entrou
sorrateiramente na casa do criador, fazendo-o refém e assinando declarações em
seu nome. Grande Eulálio! Mais modesto, eu me contentei em aplaudir e voltar
para casa.
Mas
será que o Chico, quer dizer, o Eulálio, ou algum de seus amigos, está minimamente
preocupado com o alcance de suas objeções à flexibilização do Código Civil?
Lembrei-me
do episódio que envolveu o poeta Lêdo Ivo quando da publicação de seu livro “O
vento do mar”, uma espécie de autobiografia literária mista de antologia e
reportagem fotográfica. Ao escritor que fora amigo pessoal e vizinho de Manuel
Bandeira em Teresópolis, a quem o autor de “A cinza das horas” sempre
incentivou – e os registros são muitos, a começar pela evidência do prêmio
concedido a “Ode e elegia”, ainda na
juventude de Ivo – pois a este amigo do amigo do Rei (que não é o Roberto
Carlos, mas o de Pasárgada), foi negado o direito de reproduzir uma foto sem autorização
e pagamento prévio.
Ocorre
que Bandeira nem sequer deixou herdeiros em linha direta – não teve filhos,
como diz no poema “Testamento” – mas apenas colaterais, cuja atenção para com o
poeta, em vida, fora a mínima possível, como em boa hora expôs, com a verve de
sempre, um indignado Lêdo Ivo.
Na
entrevista, que vale a pena reler agora, Lêdo Ivo ainda chamava a atenção para
os impasses criados pela família de Cecília Meireles à biografia da poeta.
(Família, aliás, que muitas vezes preferiu brigar a cuidar bem do acervo.) Quer dizer, a questão da fotografia com Bandeira fora
imediatamente percebida como um debate maior, e o problema das biografias – de que
então nem se falava – ocorreu ao autor de “O vento do mar”.
Lêdo Ivo não desconhecia que os bens jurídicos tutelados são os mesmos: honra, imagem,
intimidade, de um lado; e, de outro, liberdade de expressão e acesso ao
conhecimento. E que, em caso de dano, sempre verificado a posteriori, o Direito assegura medidas cabíveis, no âmbito civil
e penal – o que, todavia, não consola ainda hoje o seu conterrâneo Djavan, que
vem a público justificar o partido da censura prévia com uma frase digna do
General de Gaulle: “... mas o Brasil não é um país desenvolvido”.
O
apoio desse mesmo Djavan, mais Caetano Veloso, Gilberto Gil, Chico Buarque, e
Milton Nascimento – todos secundando o rei Roberto Carlos − ao estatuto
jurídico das autorizações prévias não atinge apenas suas próprias vidinhas:
reforça todo o sistema normativo brasileiro que faz com que precisemos da
autorização de herdeiros para publicar um documento de interesse público, ou
até mesmo um documento próprio, como a carta de um amigo ou a fotografia com
ele tirada. Ou seja, não atinge apenas gente como Ruy Castro ou editoras como a
Companhia das Letras: seu espectro é muito mais amplo e chega até as pesquisas
acadêmicas, confrontadas muitas vezes com herdeiros que pouco ou nada sabem sobre
os espólios que administram (e de que nem sempre cuidam) indo ainda além, e atingindo
inclusive o memorialismo – como no caso da biografia de Leminski escrita por
Domingos Pellegrini, ou da foto que falta em “O vento do mar”.
Aliás,
como dizia Lêdo Ivo, ao final da reportagem sobre a atitude dos herdeiros de
Bandeira, e antecipando o alcance do debate – “Uma biografia autorizada não é
uma biografia, pois atende às conveniências da família. E a verdadeira
biografia, que poderia servir à compreensão do leitor, está proibida no Brasil.”
Que
Eulálio não o ouça.
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