sábado, 12 de janeiro de 2013

A maldição de Orfeu



"Orfeu trovador cansado", tela de De Chirico
 

             Nas páginas do número V da Revista Brasileira de Poesia, veículo de divulgação do Clube de Poesia de São Paulo (agremiação paulista da Geração de 45), Domingos Carvalho da Silva desanca sibilações e rimas internas (que lhe parecem defeitos!) em Acontecimento do soneto, obra com que, em 1946, Lêdo Ivo reativaria a forma fixa banida pelos modernistas – basta lembrar de um Oswald de Andrade falando ironicamente no bacilo “sonetococus brasiliensis”. O episódio da crítica de Domingos Carvalho da Silva – o mesmo que reprovaria, em João Cabral de Melo Neto, o uso da palavra “cachorro” em O cão sem plumas, por achá-la “apoética” −, é um exemplo das dissimetrias entre os integrantes da chamada Geração de 45, grupo até hoje proscrito “em bloco”, desde que, ainda naqueles idos, José Guilherme Merquior inicia o discurso crítico de exceção, no artigo Falência da poesia ou uma geração enganada e enganosa: os poetas de 45.

            Nesse texto, Merquior excetua cabalmente apenas o nome de João Cabral de Melo Neto (com breves ressalvas a outros nomes), que lhe parece em tudo diverso do grupo, esquecendo-se, porém, de observar o quanto o próprio Cabral já então ecoava os paradigmas de contenção e síntese que eram os mesmos de Péricles Eugênio da Silva Ramos, Darcy Damasceno e Domingos Carvalho da Silva, mas que, em sua mão, ganhavam (e ganhariam bem mais) novas e férteis formulações. O crítico fala mesmo em “incômoda convergência cronológica”, dando assim o mote para o discurso de exceção – Cabral como o único nome relevante e por isso mesmo distônico, tom que permanecerá em estudos de Haroldo de Campos (O geômetra engajado), João Alexandre Barbosa ( A imitação da forma ) e Benedito Nunes ( João Cabral de Melo Neto ).

            Estavam lançadas as bases para a leitura em bloco e a proscrição dos demais poetas de 45, na verdade um grupo heterogêneo que contava nomes tão diversos como Octavio Mora, Paulo Mendes Campos, Bueno da Rivera ou Lêdo Ivo, sendo que a este último, embora proscrito pelo setor paulista da geração, caberia para sempre o título pouco heroico de “líder”, por ter sido um dos editores da Revista Orfeu, que circulou no Rio de Janeiro.
            É preciso salientar, porém, que o próprio Merquior chamaria a atenção para a necessidade de rever seus juízos:

Tenho fama − justificada − de detrator da geração de 45. [...] Mas não vacilarei em fazer aqui um bocado de mea culpa, retratando-me da negligência, relativa ou absoluta conforme o caso, em que deixei por longo tempo valores poéticos indubitáveis na obra de Bueno de Rivera, Lêdo Ivo ou Mauro Mota. Até 1974, eu ainda assinava ensaios condenando em bloco o ‘malsinado neoparnaso’ de 45. Hoje teria que discriminar muito mais [...]

             A provocação – a si mesmo, mas também à crítica em geral – é de 1983, mas parece não ter sido levada muito a sério, seja pela fatalidade (Merquior morreria pouco depois), seja pela comodidade, já que rever tanta coisa, sobre tanta gente, requer imenso dispêndio de tempo e alguns desagrados, em um ambiente crítico que hoje é sobretudo acadêmico. Mais fácil é perseverar na consolidação do discurso estabelecido, o que todavia nada acrescenta mesmo à compreensão do próprio João Cabral, que, embora tenha ecoado depois sua rejeição ao grupo de 45, ao tempo da estreia escreveu artigos sobre a geração e colaborou com traduções (e comentários) na Revista Brasileira de Poesia.

            Quanto a Lêdo Ivo, seria ainda o autor proscrito por ter, em um dia qualquer da década de 1940, em algum periódico dos muitos que circulavam então, proposto que se “jogasse uma pedra na vidraça de Drummond e se fizesse uma romaria ao túmulo de Bilac”. A raridade bibliográfica, citada à exaustão quando se fala da Geração de 45, encontra-se no extinto A província de São Pedro, fonte a que cheguei pela informação do próprio Lêdo Ivo, e que aqui vai citada em seu contexto, para que se tenha uma melhor dimensão do alcance e da generalidade dos termos:

O maior escritor de minha geração será aquele que organizar uma romaria ao túmulo de Olavo Bilac e, regressando à noite do cemitério, dirigir um “quebra-pedra” literário, jogando uma pedra na vidraça da janela onde o sr. Drummond fita o mar, atiçando os vinte e sete cachorros que protegem a casa do sr. Murilo Mendes, surrando o sr. Lins do Rego e provando que toda a obra do sr. Manuel Bandeira posterior a “Ritmo Dissoluto” é indigna até de citação.

            Como se vê, o ataque é geral. Mas, haverá algo de novo no front? A briga entre gerações literárias, pelo menos até o século XX (não por uma maior civilidade do meio, mas apenas porque, agora, talvez não haja "-ismos") sempre foi esperada e até desejável. Dentre uma centena de exemplos, lembremos da célebre “Questão Coimbrã”, em Portugal, com o jovem Antero atacando o provecto Castilho. O que difere, em 1945, é que os jovens se ocupavam do passado – já que os velhos insistiam na obsessão do futuro. E talvez seja isso, precisamente, que incomode, pois 1945 desestabiliza as expectativas em relação aos polos juventude/ senectude. Então não estamos discutindo propriamente literatura, mas nossos preconceitos cronológicos: um modo de ser jovem e um modo de ser velho. Psicologia, Antropologia ou Direito Previdênciário?

Alguns nomes da "Geração de 45" (da esqueda para a direita): Darcy Damasceno, Octavio Mora, Marcos Konder Reis, Domingos Carvalho da Silva, Fernando Ferreira de Loanda, Lêdo Ivo e Afonso Félix de Souza.
     

      

      Fato é que Murilo Mendes acabaria padrinho de casamento de Lêdo Ivo, e Manuel Bandeira lhe atribuiria um prêmio de poesia, convertendo-se depois em seu grande amigo e até vizinho, em Teresópolis (a capa da primeira edição de Finisterra é uma foto de ambos). José Lins do Rego saudaria também “O poeta Lêdo”, em artigo depois reunido por Lêdo Ivo na obra O cravo de Mozart é eterno, coletânea de crônicas e artigos do autor de Fogo Morto.

            Quanto a Drummond, ele mesmo reuniria de forma bem humorada todos os textos paródicos ao seu poema da pedra no meio do caminho, livro este recentemente reeditado. O artigo de Lêdo Ivo, talvez por não parecer a Drummond uma paródia típica (como de fato não é), ficaria de fora da Biografia de um poema, sendo apenas mencionado, por uma citação de citação, na edição nova, perdendo-se, também aí, a grande oportunidade de oferecer ao público leitor a íntegra do famigerado texto de Lêdo Ivo.

            Este atravessaria décadas com sua escrita multifária, também ela distônica, embora de modo diferente e até antípoda à de João Cabral, autor com quem manteve longa amizade e cujo diálogo constante sobre preferências literárias é talvez a maior prova do equívoco em que incorre a crítica, quando “pinça” um nome, carregando com ele nada menos que a sua poética peculiar, ou seu modo pessoal de reelaborar paradigmas partilhados pelo grupo, ainda que, no caso de Cabral, isso talvez equivalha a falar-se em genialidade. Mas este é outro termo proscrito pela crítica acadêmica, e como o artigo é sobre Lêdo Ivo – que nunca foi tido por gênio e talvez nem desse uma estentórica gargalhada ante a possibilidade --, deixemos disso.

            Conectá-lo, porém, à Geração de 45, ainda hoje, é um imenso equívoco. Seria como condenar um velho a passear na rua com fardas de colegial, ou, estando agora Lêdo Ivo morto, condenar o seu fantasma a cometer o mesmo crime de Orfeu – afinal o patrono daquela revista: olhar para trás.
 


P.S.: Para quem aprecie textos acadêmicos, acaba de ser publicado, sobre o tema da Geração de 45, um artigo meu em duas revistas: a REEL, da Universidade Federal do Espírito Santo, e a Inventário, da UFBA. Ali estão as referências e um maior aprofundamento do tema, embora sob o jargão teórico. Seguem os links: