segunda-feira, 30 de março de 2015

Poema II (sem título) de "Sagesse", de Verlaine

Prosseguindo com traduções pontuais de Verlaine, publico hoje, no dia do aniversário de nascimento do poeta (30 de março), um primeiro esboço do Poema II da seção I de "Sagesse" (Sabedoria), obra que marca o retorno de Verlaine ao catolicismo.
Não tenho notícia de traduções desse texto, além daquela feita pela poeta portuguesa Maria Gabriela LLansol, que verteu "Sagesse" integralmente para nosso idioma (Sageza, na sua tradução), porém sem obedecer rima e métrica.
Como tenho feito com outros poemas do autor, admito em alguns momentos a rima toante, que Verlaine evitava, mas seria longo defender as razões aqui; assunto para um artigo, que em breve espero publicar!

Retrato-escultura em inox vazado, de Verlaine, por H. Pauget






















II

Como Sisifo andara em voltas
E como Heracles me esvaíra
Contrário à Carne que é revoltas.

Demais lutara, eu desferira
Uns golpes de talhar montanhas
E como Aquiles eu brandira.

Arisco irmão, que me acompanhas,
Bem o sabes: pagã coragem,
Se as fizemos, tais campanhas,

Se nada deixamos à margem
De nossa guerra extenuante,
Se laboramos com vantagem!

Mas tudo em vão: o agre gigante
Ao raio da tenacidade
Astúcia opunha, insinuante,

E logo um intruso sem vontade
Nos meus conselhos, que ele ronda,
Lhe dava as chaves da cidade.

Fosse por bem ou mal de Roma,
Sempre no peito algum recanto
Abria as portas à Gorgona.

Sempre um rival de maus encantos
Sabia pôr numa armadilha
O honor e a vitória santos!

Fui o vencido que se pilha,
Prestes a dar bem caro o sangue,
Quando, alva em neve de mantilha,

Belíssima, altaneira e langue,
Veio na bruma a Dama, aquela,
Que fez num gesto a Carne exangue.

Em meio a ignota procela
De ódio e grita assaz malsãos,
Ali rasgando a nua goela,

Volveu o Monstro pelos vãos
Do bosque, entre hediondos amores;
E a Dama então, unindo as mãos:

− "Meu pobre lutador, que explores
o teu dilema, disse, é oco!
Trégua às vitórias com rancores!

"Pois já te chega o alto socorro
De que sou a mais certa núncia
Por te salvar, possível forro!”

− "Ó Dama cuja só pronúncia
Anima um ferido brioso
De ver, da guerra atroz, renúncia;

"Vós cujo acento é carinhoso,
Ao me dizer das coisas boas,
Quem sois, minha senhora – eu ouso?”

− "Eu nasci prévia às causas todas,
E eu que verei desses escopos
Todos, o fim: estrelas, rosas.

"Bondosa ao mesmo tempo, acolho
Pobres mulheres, homens fracos,
E choro: eu vos julgo loucos!

"Choro por cada alma em trapos,
Eu que as amo, eu que receio
Por cada anseio inconfessado!

“Ó que a ventura é outro enleio.
Vigia. Alguém há dito eu amo,
Vigia, teme o Rival no meio!

“Vigia, teme o Dia sobre-humano!
Quem é que sou? – perguntas, não?
Meu nome curva mesmo os anjos.

“Sou da virtude o seio eterno,
Sabedoria em alma impressa,
Meu nome abrasa o bronco Inferno.    

“Sou a doçura que regressa,
Eu amo a todos, sem libelo,
Meu nome, só, se faz Promessa.

“O albergue único e o mais belo,
Eu levo ao Rei vero clamor
De alba rósea e setestrelo,

“Eu sou a PRECE, e meu penhor
É teu vício, que o ermo acabrunha;
Condição: ‘Sê sábio, senhor...”


− “Senhora, sede testemunha!”

 
Manuscrito do poema (trecho).

































II

J’avais peiné comme Sisyphe
Et comme Hercule travaillé
Contre la chair qui se rebiffe.

J’avais lutté, j’avais baillé
Des coups à trancher des montagnes,
Et comme Achille ferraillé.

Farouche ami qui m’accompagnes,
Tu le sais, courage païen,
Si nous en rimes des campagnes,

Si nous avons négligé rien
Dans cette guerre exténuante,
Si nous avons travaillé bien !

Le tout en vain : l’âpre géante
À mon effort de tout côté
Opposait sa ruse ambiante,

Et toujours un lâche abrité
Dans mes conseils qu’il environne
Livrait les clefs de la cité.

Que ma chance fût male ou bonne,
Toujours un parti de mon coeur
Ouvrait sa porte à la Gorgone.

Toujours l’ennemi suborneur
Savait envelopper d’un piège
Même la victoire et l’honneur !

J’étais le vaincu qu’on assiège,
Prêt à vendre son sang bien cher,
Quand, blanche en vêtement de neige,

Toute belle, au front humble et fier,
Une Dame vint sur la nue,
Qui d’un signe fit fuir la Chair.

Dans une tempête inconnue
De rage et de cris inhumains,
Et déchirant sa gorge nue.

Le Monstre reprit ses chemins
Par les bois pleins d’amours affreuses,
Et la Dame, joignant les mains :

« Mon pauvre combattant qui creuses,
Dit-elle, ce dilemme en vain,
Trêve aux victoires malheureuses !

« Il t’arrive un secours divin
Dont je suis sûre messagère
Pour ton salut, possible enfin ! »

– « Ô ma Dame dont la voix chère
Encourage un blessé jaloux
De voir finir l’atroce guerre,

« Vous qui parlez d’un ton si doux
En m’annonçant de bonnes choses,
Ma Dame, qui donc êtes-vous ? »

– « J’étais née avant toutes causes
Et je verrai la fin de tous
Les effets, étoiles et roses.

« En même temps, bonne, sur vous,
Hommes faibles et pauvres femmes,
Je pleure, et je vous trouve fous !

« Je pleure sur vos tristes âmes,
J’ai l’amour d’elles, j’ai la peur
D’elles, et de leurs voeux infâmes !

« Ô ceci n’est pas le bonheur.
Veillez, Quelqu’un l’a dit que j’aime,
Veillez, crainte du Suborneur,

« Veillez, crainte du Jour suprême !
Qui je suis ? me demandais-tu.
Mon nom courbe les anges même,

« Je suis le coeur de la vertu,
Je suis l’âme de la sagesse,
Mon nom brûle l’Enfer têtu,

« Je suis la douceur qui redresse,
J’aime tous et n’accuse aucun,
Mon nom, seul, se nomme promesse.

« Je suis l’unique hôte opportun,
Je parle au Roi le vrai langage
Du matin rose et du soir brun.

« Je suis la PRIÈRE, et mon gage
C’est ton vice en déroute au loin ;
Ma condition : Toi, sois sage. »

– « Oui, ma Dame, et soyez témoin ! »

domingo, 29 de março de 2015

A PRIMOGÊNITA

...a primogênita de Tomé de Souza...

                                   antigo epíteto de Salvador, citado por Thales de Azevedo.

 I

Doida, fez de chão a Sé
e dissipou caixilhos
por bondes... trilhos, que arrancou depois
e frondes. Doida, doida,
o  delírio agora é para cima: a vertigem
das torres! Ah, as torres... E se enche
de reflexos,  muitos
de si mesma:
é tanta luz que se embriaga, mil espelhos
mil janelas: olhos vítreos, olhos cegos.

E faz alarde
e festeja
o fim de seu passado:
“Euzinha, coisa velha,
madeira de demolição, mas se aproveita
numa porta ou numa mesa, quanto charme!”

Pois foi sempre assim, a Grande Doida
esta senhora
e se por um tempo nos fez boa figura,
foi apenas ilusão: o fastígio de seus bens (que sempre os teve muitos).
Quer mais é esconder seus anos, ser Futura
como nunca o poderá, se gaguejo impertinente
minha praga-avessa, aqui vai ela:
           
                                   TUA PRI-MO-GE-NI-TU-RA!



 II

Volta pra casa, maluca: ’cê tá é velha.
Perdi meus pronomes, toda a compostura:
toma jeito de velha, te compreende, te emenda.

Toma tento, tenência,
óleo de rícino, elixir.
Lembra do Pirajá, que já pirou por ti;  lembra
da roda de enjeitados, ou do poeta-monge,
ou de Cecéu, ou dos mais próximos, 
que ainda agora foram (nem listo!).
Faz-se de besta, te conserta,
ó tia doida, vovozinha tresvairada,
minha bisa, minha mãe avoenga,
mil mulheres de olhos virados,
e mais a hiena de Salpetrière.
Volta, sinhá dona, volta!

Mas, quem é que pode?
Meteu na cabeça que é moça, viu demais novela,
acreditou.


III

(Num 29 de março qualquer)

No teu aniversário, melhor fora te calar verdades?
Tenho é gosto em te passar na cara:
és  velha, e a mais velha −

a primeira a nascer
e a primeira a esquecer.

Doida, desassuntada, ridícula...

(A Cidade atira na cabeça do poeta
                        uma lioz de Tomé de Souza.)

DOIDA DOIDA DOIDA!
Pois vou te arreliar que nem moleque perdido
vou puxar tua saia           vou te pôr apelidos:
a Babilanga, a Salvarelha,  a Dona Moça,
a Brilhosa, a Escondida, a Defendida,
a Fedida, a Podre-doce, a Dondocuda,
mil vezes doida...
                       
            Eu desvio, eu sempre desvio,
                        eu cato essa lioz e te devolvo.



In: "Culpe o vento". Rio de Janeiro: 7Letras, 2014, p. 167-169.


sábado, 21 de março de 2015

VENDE-SE (PREGÃO ACIDENTAL)


Vende-se esta fazenda
sem as dores, hectares
somente, e na Soares
Lopes (Centro), vende-se
um ventilado apartamento
            (frequentado pelo vento)
sem ninguém olhando o mar
           
Pois se vende agora tudo
que foi sonho de ficar:
todo um sul que desaprende
o seu norte de comprar

se o cacau, de pouca renda,
não sustentando a fazenda,
levanta o letreiro no ar:

VENDE-SE ESTA FAZENDA

            com pasto, curral, muar,
            e cocho, barcaça, moenda
            − isso não tem, é por rimar;
                        só terá talvez ainda
                        uma vista de outro mar:
o de uma Atlântica Mata
que no céu vai naufragar
           
enquanto, novos tropeiros
nonsenses, a debandar,
à falta de burros, veleiros,
vão ilheenses voar

por um perseguido janeiro
que tentam atocaiar:
cidade de veraneio,
loteada como está,

            embora o sol não se venda,
            e falte sem avisar;

embora seja barrento
perau, o mar de afogar.

Mas se querem liquidez,
logo aceitam trocar
por qualquer afogamento
            o morar e o plantar;
            que se venda o apartamento
            de vez, a fazenda e o mar
que se avista, praia Atlântica

            ou Mata – mas não se matar.


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In: "Cacau inventado". Ilhéus: Mondrongo, 2015 (no prelo).


sábado, 7 de março de 2015

O PAVÃO LILÁS

Ora, a tristeza, este pavão parelho,
veio para mim, que sou de fora.
Luar que vem pousar no meu joelho
com laivos de lilás, de muda aurora.

Lacre do clarim, é um pavão mais velho,
que passa por coruja nesta hora.
Tem exéquias de roxo. Eu o assemelho
aos crepúsculos, ao cacau de agora.

Não é o doge, nem quer se ver no espelho,
vestido só de réquiem, nas inglórias
mortalhas tão sem pompa e sem chavelho.

Pavão vermelho é em Sosígenes Costa.
Eu tenho é dó desse lilás parelho,
sem ter quintal e só mandado embora.


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Do livro inédito "Cacau inventado" (no prelo).